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Nobres cascas, talos e ramos que tanto fazem contra o desperdício alimentar na cozinha de Sofia Magalhães

Ao desmerecermos uma maçã madura não estamos apenas a descartar um alimento reaproveitável. Há toda uma linha de produção e distribuição que se perde. Ao ato chama-se desperdício alimentar, um flagelo neste nosso mundo. Atenta ao facto, Sofia Magalhães dá-nos o livro “Da raiz à rama. Nada se perde, tudo se cozinha”. Em conversa com a autora, redescobrimos a simplicidade do reutilizar. Tão simples quanto é olhar para uma casca, talo, rama ou caroço como um recurso, não como lixo.

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IN Edições/Cristina Vaz e António Tomás

 

 

Um chá gelado que aproveita as cascas e os caroços de fruta, um Gaspacho de “salada velha”, que faz uso das sobras de salada já temperada, ou um Gratinado de rama de alho-francês e batata-doce, para utilizar a rama deste último vegetal, são receitas que “visitam” com frequência a cozinha de Sofia Magalhães. Para dar prova da forma engenhosa de aproveitar as partes “menos nobres” de alimentos, tantas vezes desmerecidas nas nossas cozinhas, a autora do Blog da Spice, fez-se à escrita do seu primeiro livro, “Da raiz à rama. Nada se perde, tudo se cozinha” (IN Edições). Com este, apresenta-nos receitas e conselhos para fazer da nossa mesa diária um ato de carinho para com o planeta. O tema subjacente às mais de 220 páginas da obra é o desperdício alimentar.

 

Um alerta de Sofia que se faz com números, como lemos no presente título: “um terço dos alimentos produzidos em todo o mundo (1,3 biliões de toneladas) é desperdiçado”

 

Sofia acredita numa alimentação feita à medida de cada um, não um tamanho único. Na sua dieta diária, a autora não dispensa os cereais integrais, vegetais, leguminosas, frutas e oleaginosas. Uma cozinha que, na vida de Sofia, é algo de “quase inato”, um dom familiar que cultivou em Angola, onde viveu, mais tarde aprofundado já em Portugal, com o curso de culinária macrobiótica.

 

Sofia não se limita a levar à mesa aquilo que lhe oferece a sua horta na região Oeste, território para onde se mudou há alguns anos e onde vive. Para a autora, com um curso em Comunicação Social e especialização em Marketing, o desperdício alimentar é um “flagelo”, não só pela perda do produto em si, mas de todos os recursos envolvidos na sua cadeia de produção e distribuição.

 

A Sofia, choca-lhe a apatia sobre o problema: “este tema devia sim ser notícia de abertura dos telejornais com mais frequência”, sublinha na entrevista ao SAPO Lifestyle.

 

Como contributo para minimizar nas cozinhas nacionais o desperdício alimentar, a autora incentiva-nos na utilização daqueles que são tidas como as partes menos nobres dos alimentos: ramas, talos, caroços, cascas, recordando-nos as qualidades nutricionais dos mesmos e remontando aos porquês de os desmerecermos, dado haver uma tradição na cozinha portuguesa associada aos mesmos: “nos últimos cem anos talvez tenhamos “desaprendido” mais do que aprendido, em relação a este tema”.

 

A autora incentiva os leitores à compostagem porque “tudo o que vem da terra pode e deve voltar à terra”.

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IN Edições/Cristina Vaz e António Tomás

 

 

Todos temos uma história de vida. A da Sofia inclui uma mudança da cidade para o meio rural e, com ela, um novo rumo. Quer partilhar connosco?

 

Sim é verdade, foi uma mudança grande porque toda a vida vivi na cidade, apesar da minha Mãe ter tido durante vários anos uma casa de campo, que era o meu refúgio de fim de semana. Essa mudança deu-se após eu ter regressado de Angola, ter decidido mudar completamente de vida e dedicar-me ao meu projeto do "Blog da Spice". Porém, Lisboa já não era a cidade mais ou menos tranquila que eu tinha deixado três anos antes, Lisboa estava “na moda” e eu deixei de me encaixar no ritmo frenético que a acompanhava e acompanha. Toda esta mudança de vida só aconteceu porque eu me permiti abrandar o ritmo e por isso a mudança para um local mais tranquilo era inevitável. Senti que precisava de enraizar e reconectar-me com a Natureza.

 

 

A Sofia pratica aquilo a que chama uma alimentação “consciente”, sem a querer encaixar em nenhum regime específico. Como compõe a sua dieta alimentar?

 

Acredito muito que cada pessoa deve criar a sua própria realidade alimentar, a alimentação deve ser “taylor made” e não “tamanho único”, porque cada corpo tem necessidades diferentes, só precisamos é de o saber escutar. No meu caso a base da minha alimentação são os cereais integrais, vegetais, leguminosas, frutas e oleaginosas. Ocasionalmente consumo alguns produtos de origem animal como ovos, queijo, iogurtes e pescado. Não quer isto dizer que não como uma fatia de bolo de aniversário quando vou a uma festa ou até umas batatas fritas, mas são exceções e não a minha base alimentar.

 

 

Como se dá o seu relacionamento com a culinária e como evoluiu?

 

Não me lembro da minha existência sem alguém próximo de mim estar a cozinhar. As mulheres da minha família sempre cozinharam bem e para muita gente, por isso sinto que foi algo quase inato, e talvez por me parecer tão “comum” nunca pensei profissionalizar-me nesta área. Cozinhava muito para os meus amigos e família, até que em Angola uma amiga me sugeriu que eu começasse um blogue, já que estavam sempre a pedir-me as receitas. Comecei quase por brincadeira, mas depois este projeto ganhou “vida própria”. Porém, só quando regressei a Portugal é que decidi aprofundar o meu conhecimento nesta área com o curso de culinária macrobiótica do Instituto Macrobiótico Português.

ACREDITO MUITO QUE CADA PESSOA DEVE CRIAR A SUA PRÓPRIA REALIDADE ALIMENTAR, A ALIMENTAÇÃO DEVE SER 'TAYLOR MADE' E NÃO 'TAMANHO ÚNICO'.

A Sofia tem a sua própria horta onde produz parte dos alimentos que consome. Contudo, uma horta não é replicável em apartamentos, embora haja soluções. O que podemos fazer?

 

Sim, talvez uma horta como a minha não seja replicável num apartamento, mas há alimentos que se dão perfeitamente em vasos, desde que com boa exposição solar e rega, como por exemplo, tomates, alface, couves, ervas aromáticas, entre outros. Quem tem uma marquise ou varanda pode começar uma horta vertical ou então optar por uma horta urbana, há imensas em Lisboa e arredores é mesmo uma questão de se informarem na junta de freguesia ou câmara a que pertencem. Plantar para comer encerra o ciclo perfeito e ganhamos uma visão bem diferente sobre a alimentação e a Natureza.

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Sofia, podemos afirmar que ao levarmos para a cozinha ramas, talos, cascas e caroços estamos, com pequenos gestos, a cuidar da nossa casa comum?

 

Sem dúvida nenhuma, aliás tudo o que fizermos para evitar o desperdício alimentar contribui para cuidar do planeta. É neste ponto que sinto que as pessoas não têm, infelizmente, noção da dimensão deste flagelo. Quando pensamos em desperdiçar comida pensamos apenas no final da cadeia, como deitar uma maçã para o lixo, mas esquecemo-nos que para aquela maçã chegar até nós, foram precisos inúmeros recursos, como a água, o solo, a mão de obra, os transportes, entre outros, e tudo isso também foi desperdiçado. Desperdiçar alimentos é desperdiçar recursos e ainda contribuir para a emissão de gases de efeito estufa (é uma das principais fontes). Em muitos outros flagelos ambientais podemos culpar os governos, as indústrias, entre outros, neste não. Reverter isto depende maioritariamente de nós e dos nossos hábitos.

 

 

O que mais a choca no desperdício diário relacionado com os alimentos?

 

A falta de consciência sobre o problema é o que me choca mais. Este tema devia sim ser notícia de abertura dos telejornais com mais frequência, já deveríamos ter políticas de sensibilização mais instituídas e inclusive educar para este tema desde tenra idade. Aliás não só para este tema, para a importância da alimentação em geral, esta podia ser uma parte integrante da cadeira.

 

 

Faz consultoria para restaurantes e marcas. Há um interesse crescente por parte destes em desenvolverem ementas/produtos mais sustentáveis?

 

Noto que de uma forma geral sim, porque o consumidor também assim o exige, mas é um tema sensível - como qualquer tema relacionado com a sustentabilidade - porque as pessoas gostam de “apontar o dedo” mais pelo que determinada marca não faz do que pelo que tenta efetivamente fazer neste âmbito. Acho que qualquer mudança real e com vista à sustentabilidade do planeta é positiva, se a sustentabilidade é uma “moda” que venha para ficar.

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IN Edições/Cristina Vaz e António Tomás

 

Consegue determinar a razão que nos levou a deixar de consumir, por exemplo, ramas? Será que as cadeias de distribuição as descartam antes de chegarem ao consumidor?

 

Pelo que pude apurar na maioria dos casos as ramas são descartadas logo no produtor, não chegam sequer às cadeias de distribuição, porque estas não as querem e porque o consumidor também não as quer e não sabe o que fazer com elas. As ramas são a parte mais perecível dos alimentos, pela rama conseguimos logo perceber se aquela beterraba foi colhida ontem ou há uma semana. Se vendermos apenas a raiz da beterraba, sem a rama, não conseguimos perceber isso. Mas acho que este tema é causa-efeito também, as pessoas “desaprenderam” a usar as ramas, porque dão mais trabalho de lavar, precisam de ser bem confecionadas, etc. e por isso as cadeias deixaram de as vender. Se o consumidor as passar a exigir garanto que em breve não haverá à venda uma cenoura sem rama.

 

AS RAMAS SÃO A PARTE MAIS PERECÍVEL DOS ALIMENTOS, PELA RAMA CONSEGUIMOS LOGO PERCEBER SE AQUELA BETERRABA FOI COLHIDA ONTEM OU HÁ UMA SEMANA.

 

De qualquer forma, encontramo-los, por exemplo, em mercados locais e mesmo assim não os utilizamos…

 

Verdade, eu acho que nos últimos cem anos talvez tenhamos “desaprendido” mais do que aprendido, em relação a este tema. Os nossos avós e bisavós aproveitavam integralmente os alimentos, muitos por necessidade e outros tantos por terem noção do que custa semear, tratar e colher cada alimento. Quando começámos a distanciar os produtores dos consumidores finais fomos perdendo esta noção e eu diria até esta consideração pelos alimentos. Passou a ser mais “fácil” deitar alimentos no lixo.

 

 

A nossa cozinha tradicional é rica na utilização destas partes “menos nobres” dos vegetais e frutos?

 

Sem dúvida, se pensarmos nos pratos típicos portugueses são pouco os que não aproveitam integralmente todas as partes dos vegetais e/ou animais. Das migas ou esparregado, que em muitas zonas se faz com as ramas, até aos pratos com miudezas temos isto muito presente na culinária tradicional.

 

 

Num tempo em que tanto se fala de saúde e bem-estar será um contrassenso não usarmos as ramas e os talos. Estes são ricos em nutrientes?

 

São bastante ricos em nutrientes e fibras, às vezes até mais do que as restantes partes. Noto que na grande maioria das vezes as pessoas comem o que sempre se comeu lá em casa e não questionam o “porquê” de se comer isto e não aquilo. Quando pergunto porque comem a casca da batata, mas não a casca da cenoura a resposta na maioria das vezes é: “sempre vi fazer assim”. E noto que estão pela primeira vez a questionar isso para chegarem à conclusão de que não há uma razão válida. Se por um lado há saberes antigos que devemos resgatar em relação aos alimentos, por outro falta um bocadinho de espírito crítico também.

 

 

Pode dar-nos alguns exemplos de como desperdiçamos na cozinha e olhamos para bens alimentares aproveitáveis, ou partes deles, como se se tratasse de lixo?

 

Primeiro, tudo o que vem da terra pode e deve voltar à terra, ou seja, se em vez de compostarmos os nossos resíduos orgânicos os estamos a colocar no lixo (que irá para um aterro), estamos a desperdiçar nutrientes que podiam nutrir o nosso solo, já que o processo de degradação dos resíduos orgânicos em aterro só traz poluição. salvo raras exceções.

Em termos mais práticos, nos vegetais e frutas tudo se aproveita: cascas, raízes, caroços, talos, ramas, é mesmo da raiz à rama.

 

 

Na má conservação também se perdem alimentos?

 

Sim, por essa razão é que achei importante incluir um capítulo só sobre acondicionamento e conservação de alimentos, para que as pessoas pudessem consultar qual a melhor metodologia quando têm dúvidas. A falta de correto acondicionamento pode ser a diferença entre um alimento durar três dias ou mais de uma semana, sem exagero nenhum.

 

 

Sobre as receitas em concreto que apresenta no livro, implicaram muita pesquisa e testagem?

 

Algumas mais do que outras. Na realidade este livro acaba por ser o culminar de quase dois anos de trabalho que venho desenvolvendo neste âmbito, já fiz workshops, lancei e-books, partilho nas minhas redes sociais, dicas e receitas sem desperdício, tenho uma área do meu site dedicada a este tema. Ou seja, já estava acostumada a criar receitas com esses “desperdícios” o que facilitou, mas tive alguns desafios claro, até porque quis ir mais além com algumas partes de alimentos e também entender porque deixámos de as aproveitar.

 

 

Quer dar-nos alguns exemplos, das entradas às sobremesas, das receitas que incluiu no seu livro?

 

Tenho dificuldade de escolher apenas algumas porque tenho muitas favoritas, mas aqui vão: Chá gelado [para aproveitar as cascas e caroços de fruta], Gaspacho de salada velha [para utilizar sobras de salada já temperada], Gratinado de rama de alho-francês e batata-doce [para usar a rama do alho-francês], Crumble de banana e chocolate [para usar bananas muito maduras e com casca].

 

 

| Fonte: Sapo, 11 Junho 2021

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